Antes de mais, aconselho os caros leitores a ir ver o arquivo do mês de Janeiro de 2006 para lerem ou relerem o relato de uma das minhas viagens de canoa.
Eu acabo o relato com a afirmação “Canoa Publica nunca mais!” mas a verdade é que duas semanas mais tarde já utilizava este meio de transporte novamente. Tive mais algumas experiências menos agradáveis, algumas inclusive de bote, mas nenhuma chegou à intensidade da relatada. (Assim de cabeça conto 10 viagens de canoa, 3 com mau tempo)
Então porque volto eu a este tema? Simples, porque toda e qualquer viagem em canoa pública é uma aventura, e se nem todas merecem ou me marcam o suficiente para estarem aqui, outras provaram ser merecedoras de tal honra. Foi esse o caso desta viagem, ocorrida dia 21 de Abril (dia em que escrevo isto para não me esquecer).
Tudo começa ao meio dia, hora a que me dirijo ao porto de Bissau (Pichiquiti para ser mais exacto) onde sou informado que a canoa parte à uma da tarde. Olho para a maré e prevejo que a canoa nunca sairá antes da uma e meia, pelo que opto por aproveitar o tempo para comprar mais uns materiais e ultimar alguns pormenores visto que não devo voltar tão cedo a Bissau. Não almocei porque ao meio dia não há muita fome e achei que era melhor aproveitar o tempo em coisas mais válidas... primeiro erro!
Chego ao porto à uma da tarde e como era esperado a maré ainda não permitia a saída das canoas. Como já vai sendo hábito fui assediado pelos vários capitães das canoas para viajar nas suas (as melhores do mundo e arredores segundo os próprios). Olhei para as três canoas que iam partir e optei pela “Colheta” mais porque nunca tinha andando nesta (já varri todas as outras) que por qualquer outra razão... segundo erro! A verdade é que a canoa não ia muito cheia (vantagem de hoje haverem tantas canoas) pelo que pressagiei uma tranquila e rápida travessia (ainda agora me estou a rir desta reflexão idiota). Fiquei a conhecer os horários das canoas. Para a próxima vez tenho que ter em conta a maré, o número de canoas e o dia da semana. O horário é uma combinação entre dois factores. A maré, que tem de estar suficientemente alta para evitar os bancos de areia e ficar atolada a meio do caminho e suficientemente cheia para não caber nem mais um bidon (garrafa, garrafão ou jerican) para o capitão partir. Como referi a canoa estava relativamente vazia, pelo que esperamos ainda mais tempo que o necessário (em termos de maré) para ver se enchia mais. Após meia hora de espera o capitão lá se decidiu a ligar o motor. Foi quando tive o primeiro “feeling” negativo. O raio do motor só pegou após muitas tentativas e esforço.” O que vale é que eles andam sempre com um motor de emergência” Terceiro Erro! Esta canoa é conhecida por só ter um motor e do mesmo ser bem velho. Obrigadinho pelo aviso tempestivo ( termo correcto para quem usa atempadamente)!
A viagem lá começou, pus por isso os meus fones e libertei-me do mundo exterior. Só voltei a ter contacto com a realidade que me rodeava quando o motor engasgou-se e parou após meia hora de viagem. Aproveitei para ir para a proa fumar um cigarro. Passado pouco tempo lá puseram o motor novamente a funcionar e seguimos viagem. O alívio na cara das pessoas era visível e ri-me interiormente ao pensar que não havia razão para preocupações... em último caso temos sempre o motor de reserva! Aliás seria uma estupidez fazer a viagem só com um motor, é uma regra básica da navegação e das normas de segurança, por isso é inconcebível a ideia de andar sem um segundo motor.
Uma hora depois e estando já a chegar ao ilhéu da areias (que pelos meus cálculos representa metade do trajecto) o motor voltou a parar. “Hora do cigarro” pensei eu descontraidamente enquanto ouvia “ a minha aventura homossexual com o General Custer” dos Xutos. Fumei o cigarro, ouvi mais uma música e mais outra e outra e nada. Entretanto no horizonte via uma canoa a aproximar-se lentamente, provavelmente vinda de Bolama a caminho de Bissau. E nesse mesmo momento chega um dos marinheiros aproxima-se do sítio onde estou (tinha decidido ficar no exterior a apanhar a brisa do mar, onde arranjei um lugar parecido com o do DiCaprio no Titanic) e começa a desenrolar a corda da âncora. Foi ai que um relâmpago me atingiu e um obscuro pensamento me invadiu. Será possível que não haja um segundo motor? È verdade, o idiota do capitão anda a fazer viagens só com um motor ainda por cima um motor velho que prega partidas. As probabilidades do motor pifar a meio da viagem eram suficientemente altas para não valer o risco, agora se adicionarmos o facto de estar na Guiné... é no mínimo brincar com o fogo!
Descobri que ia voltar a Bissau a reboque da outra canoa, a “Amizade”. Lembram-se da minha crónica anterior sobre viagens m canoas? Pois foi na “Amizade” que se passou! Mas desta vez a canoa rubra apareceu como Jesus Cristo aos pecadores...a salvação! Após alguma discussão e muito gozo por parte dos passageiros e tripulantes da “Salvadora” (como a baptizei na altura) lá se amarrou uma corda entre as duas embarcações. Seguimos viagem comigo na proa em pose de almirante (tenho de arranjar o chapéu apropriado!) e tudo parecia estar a correr bem, até que... para demonstrar a solidez da “Imprestável” (novo baptismo para a “colheta”) o poste que segurava a corda cedeu e ficamos novamente à deriva. Foi novo gozo. Agora como é que seriamos rebocados? Simples, fomos tal como uma embarcação siamesa, lado a lado com uma fartura de água a entrar na “Imprestável” porque sendo mais baixa comia com as rebentações provocadas pela navegação imperial da “Salvadora”.
Já a menos de dez minutos do Porto de Bissau (já estávamos embarcados à mais de três horas) o motor da “Imprestável” decide começar a funcionar, pelo que o capitão, demonstrando uma confiança, audácia ou simples estupidez natural (o meu voto vai nesta última) manda libertar o barco. Nesta altura pensei que, com o orgulho ferido queria ao menos aportar pelos seus próprios meios... mas NÃO! O idiota, não satisfeito com a burrada decidiu que o motor estava impecável e que ainda havia hipótese de ir para Bolama! Por estar demasiado absorvido a imaginar quais os mais sádicos e cruéis métodos de tortura que poderia exercer no capitão não reparei na sua real intenção pelo que quando tomei consciência do que se estava a passar já a “Salvação” se tinha transformado em “Miragem” e o “Imprestável” em “Redenção” já que considerei que Deus num dos seus acessos de sarcasmo decidira fazer assim uma penitência forçada a este pecador não arrependido. Os quinze minutos seguintes foram passados com uma imagem recorrente de mim, um ferro em brasas e o capitão numa qualquer cela escura e mofenta. Mas alguém deve gostar do capitão porque a música seguinte foi o “Relax” dos Frankie Goes to Holliwood, que teve um efeito calmante em mim.
O estado de tensão na canoa era notório. Após três horas e meia estávamos praticamente no início da travessia, muitos de nós molhados (eu safei-me graças à inspiração DiCapriana, mas pior sorte teve a minha mochila) e com um mau presságio muito forte a recair sobre a “Imprestável”, cuja menção só me faz pensar “MAS PORQUÊ?”
No reinicio da viagem fomos acompanhados por um golfinho, que podia ser só imaginação minha, mas era capaz de jurar que se estava a rir a bandeiras despregadas, mas numa tentativa de reconciliação com o mundo tentei encarar a sua presença como um sinal de fé e esperança.
Agora eram precisas só duas coisas para tudo correr bem, O motor não parar e não encalharmos em nenhum banco de areia. Ambas com boas probabilidades de acontecerem dado os precedentes no primeiro e o adiantar da hora (e consequente baixar da maré) no segundo. Se o capitão tivesse um GPS com a carta marítima da Guiné (já tenho o meu encomendado!) não haveria problema, se tivesse-mos um qualquer tipo de sonar também poderíamos evitar os bancos, mas não, aqui encontramos pequenas soluções para grandes problemas... aqui usámos uma cana de bambu para ir testando a profundidade da água. Assim perdi o meu lugar na proa para um marinheiro poder fazer de “Sonar Manual”. O sistema não é de muita confiança, porque com a canoa em movimento basta que se chegue a um banco mais alto que não há tempo para avisar e parar o motor.
Foi o que aconteceu. Suspirei e respirei bem fundo. Estava já convencido que ia passar a noite na “MAS PORQUÊ” quando vejo vários homens a fazerem-se ao mar e a começarem a empurrar a canoa com ajuda do motor. Havia esperança!
Não sei se estão lembrados mas eu não tinha almoçado... mas felizmente e devido a um escasso acesso de lucidez da minha parte comprei em Bolama um pacote de bolachas e pus uma garrafa de água na mochila, e como por sorte não precisei, ainda lá estavam. Foi um breve momento de descontracção em comunhão com os restantes passageiros, com os quais dividi o meu pequeno pacote de bolachas (ainda pensei em virar-me para o mar e comer tudo em silencio, mas lembrei-me do Bilbo Baggins a dizer “Its mine... my precioussss!” e resisti!).
Após sete horas e meia dentro do “MAS PORQUÊ” estávamos a chegar a Bolama, devo admitir que o meu moral encontrava-se no fundo do lodo e que estava necessitado de algum apoio. Foi então que aconteceu! “Amo Bishop Roden” dos Boards of Canada. Raramente na minha vida uma música teve tal impacto em mim. Com o porto de Bolama à vista, num início de noite já carregado de estrelas, com a brisa quente a bater na cara, a melodia foi avançando, num crescendo que apesar de tão bem conhecer me fez acreditar que nem tudo era mau, que as últimas horas já tinham passado e que contra todas as probabilidades conseguiríamos chegar sãos e salvos a terra! Para além do tempo do desconforto e do cansaço não perdemos mais nada. Pelo contrário, ganhei uma nova imagem da canoa “Amizade” e da sua tripulação (apesar de bêbados são boa gente), fui acompanhado por um golfinho gozão, aprendi a usar a “sonda manual”, conheci mais alguns Bolamenses e por fim tive a incrível sensação de chegar ao destino num estado de espírito a roçar o místico, só possível pelas circunstâncias da viagem. Obrigado Boards!
PS: Desta não digo canoas públicas nunca mais mas antes “Colheta” NUNCA MAIS!
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Página inicial